Os mistérios em torno da doença de Alzheimer são inúmeros. Os pesquisadores ao redor do mundo trabalham incansavelmente para tentar desvendá-los e descobrir como o cérebro adoece, como reconhecer os sinais da patologia, antes mesmo de ela instalar-se, e como curar os que já estão doentes. A cientista Maria José Diógenes, professora associada com Agregação de farmacologia e terapêutica geral da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Investigadora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, é uma das estudiosas na linha de frente dessa batalha.
Intrigada pela doença de Alzheimer e pelos processos envolvidos na formação e na perda da memória, a professora Maria José estuda o tema há quase 20 anos, desde quando ela ainda era estudante de Ciências Farmacêuticas na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Ela escreveu a monografia de final de curso sobre os fármacos usados no tratamento do Alzheimer. “Já nessa altura, foi para mim muito marcante perceber as dificuldades inerentes ao tratamento desta doença e a escassez de medicamentos”, afirmou em entrevista exclusiva para o canal Thereus Health.
Atualmente, a professora Maria José estuda três diferentes meios para enfrentar a demência: um novo fármaco, um biomarcador para detetar o Alzheimer e como ele desenvolve-se.
A seguir, a entrevista na íntegra:
Thereus Health – No momento, a senhora e a equipa estão a estudar um medicamento novo. Qual é a proposta desse fármaco?
Professora Maria José – Neste momento, estamos a testar um novo composto por nós inventado. Ainda não é um medicamento. Este composto é uma molécula desenhada por nós, que tem a capacidade de passar a barreira hematoencefálica e, como tal, chegar ao cérebro. Esta nova molécula apresenta um mecanismo de ação inovador que impede a degradação, nos neurónios, de mecanismos neuroprotetores que são lesados na doença de Alzheimer.
No cérebro dos doentes com Alzheimer, ocorrem várias alterações. Uma delas é a destruição de um recetor muito importante que age como mediador de um fator neurotrófico, o BDNF. O BDNF é fundamental para a proteção dos neurónios contra os agentes agressores. Ele ajuda a sobrevivência neuronal e está intimamente envolvido nos mecanismos moleculares importantes para a memória. A destruição deste recetor resulta na perda da função do BDNF e na formação de fragmentos do recetor, que têm efeitos nocivos. Por conseguinte, o nosso composto apresenta um duplo desempenho: impede a destruição do recetor do BDNF, a perda da ação e a formação de fragmentos com ação indesejada.
Thereus Health – Em que estágio de desenvolvimento da medicação a senhora está?
Professora Maria José – Todo o estudo de desenho do novo composto foi feito. Nós já o testámos, com sucesso, in vitro e ex vivo, tanto do ponto de vista molecular como funcional: nós já conseguimos provar que o composto protege a clivagem dos recetores do BDNF e recupera as funções. Nós já testámos, com sucesso, a capacidade deste composto atravessar a barreira hematoencefálica.
Para chegarmos aos testes clínicos, nós temos de completar os nossos estudos com ensaios animais in vivo que estão em curso.
Thereus Health – Por qual razão é tão difícil descobrir tratamentos revolucionários e eficazes para a doença de Alzheimer?
Professora Maria José – Os desafios no campo das doenças neurodegenerativas e em concreto da Doença de Alzheimer são vários, eu saliento três: 1) conhecer melhor os mecanismos moleculares envolvidos na Doença de Alzheimer; 2) encontrar novos fármacos e 3) validar formas de diagnosticar a doença em fases muito iniciais (novos biomarcadores).
Nós já conhecemos algumas alterações moleculares características da doença de Alzheimer, mas ainda há muito por clarificar.
O conhecimento detalhado do que se passa no cérebro dos doentes é fundamental e permitirá encontrar os novos alvos terapêuticos e, consequentemente, os novos fármacos. Contudo, este passo tem-se mostrado muito difícil. Esta dificuldade deve-se a vários fatores, desde logo as limitações inerentes aos modelos animais que dispomos, por não reproduzirem fielmente o que se passa no ser humano, por outro lado, por ser uma doença que afeta o sistema nervoso central, o acesso a tecidos humanos é mais difícil.
O desenvolvimento de fármacos para o tratamento desta doença também apresenta um grau de complexidade acrescido. O cérebro é um órgão extremamente importante e, como tal, está protegido por um conjunto de células que formam uma barreira hematoencefálica. Esta barreira pode proteger o cérebro de agentes agressores, mas também pode dificultar a entrada de fármacos para o tratamento de doenças do sistema nervoso central. Desse modo, o desenho de moléculas que chegam ao cérebro causam maiores dificuldades.
Enfim, a validação de novos biomarcadores que permitissem antecipar o diagnóstico da doença, seria de extraordinária importância, pois possibilitaria uma intervenção mais precoce.
Thereus Health – A senhora também está à frente de outras duas linhas de investigação: compreender como o Alzheimer desenvolve-se e descobrir um novo biomarcador para a doença. O que a senhora julga mais promissor: um tratamento para coibir a evolução do Alzheimer ou uma abordagem para impedir que ela ocorra?
Professora Maria José – As duas abordagens são promissoras, mas ambas com grandes dificuldades: 1) “Um tratamento para coibir a evolução” da doença é difícil, pois quando os primeiros sintomas aparecem, já aconteceram muitas alterações moleculares no cérebro dos doentes, algumas provavelmente irreversíveis; 2) um tratamento que impeça que a “doença ocorra” também apresenta muitas dificuldades, porque as alterações moleculares que ocorrem iniciam-se muitos anos antes do aparecimento dos sintomas. O ideal era conseguirmos encontrar uma estratégia profilática que pudesse ser usada por todos, desde muito cedo, para evitar a doença. Mas, para tal, nós temos de conhecer ainda mais detalhadamente esta doença.
Thereus Health – No futuro próximo, a senhora acredita que haverá mudanças e evoluções a caminho no tratamento da demência?
Professora Maria José – Nós sabemos que os ensaios clínicos não têm sido muito encorajadores. O conhecimento que adquirimos com os resultados destes ensaios é extraordinariamente importante para planearmos o futuro da investigação científica na área das demências e em concreto da Doença de Alzheimer.
Estou convicta de que a mudança e a evolução no tratamento da doença de Alzheimer dependem, em grande parte, da ciência básica que permitirá conhecer minuciosamente os mecanismos subjacentes à doença, o que nos ajudará a encontrar novas estratégias terapêuticas. Este é um caminho que tem sido trilhado há anos e só a continuação nos levará a soluções mais eficazes para o tratamento desta doença.
Thereus Health – Por fim, há quantos anos a senhora investiga a doença de Alzheimer e como surgiu o interesse por essa patologia?
Professora Maria José – Ainda como estudante de Ciências Farmacêuticas na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa interessei-me por os estudos que as equipas de investigação estavam a realizar no âmbito da neurociência e em concreto sobre a doença de Alzheimer. Como trabalho final de curso escrevi uma monografia sobre os fármacos usados no tratamento da doença de Alzheimer.
Quando desenvolvi as minhas teses de Mestrado e de Doutoramento, no Instituto de Farmacologia e Neurociências da Faculdade de Medicina de Lisboa e no Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, tive a oportunidade de estudar uma molécula com um papel muito importante no cérebro, o fator neurotrófico derivado do cérebro, que, de forma abreviada, designamos por BDNF. Esta molécula é neuroprotetora e, pela ativação do recetor (TrkB-FL), está envolvida na sobrevivência das células, em processos de formação de novos neurónios e, muito importante, medeia mecanismos cruciais para a formação de memória e de aprendizagem.
Nos cérebros dos doentes com Alzheimer, o BDNF está diminuído e como tal as funções estão comprometidas. Por isso, muitos investigadores têm tentado repor os níveis de BDNF no contexto da doença de Alzheimer. Contudo, o BDNF não chega ao cérebro facilmente porque não consegue atravessar a barreira hematoencefálica. Muitas foram as estratégias usadas para aumentar os níveis de BDNF no cérebro. E, na verdade, já foi possível aumentar o BDNF no cérebro, mas os efeitos não foram totalmente reestabelecidos.
Ao longo do meu doutoramento segui atentamente a evolução das descobertas neste campo e, também eu, tentei encontrar estratégias para repor as ações do BDNF no sistema nervoso central. No decorrer do estudo que estive a fazer, surgiram novas perguntas e quando terminei, a questão que eu queria ver respondida era o porquê do aumento do BDNF em contexto de doença de Alzheimer não resultar no aumento da função. E, na procura da resposta a esta questão, em conjunto com o meu primeiro estudante de doutoramento, André Jerónimo-Santos, acabámos por descobrir um mecanismo subjacente à doença de Alzheimer que estava na base da perda de função do BDNF, a clivagem do recetor TrkB-FL.
Esta descoberta levou à tentativa de encontrar um fármaco que revertesse as alterações encontradas. E, em conjunto com um investigador de Coimbra, surgiu a ideia do fármaco que começamos a desenvolver.
Quando escrevi o projeto de investigação que ganhou o prémio Neurociências Santa Casa, e que está a financiar este estudo, reuni uma equipa multidisciplinar e internacional para assegurar que tinha todos os recursos necessários ao desenvolvimento do trabalho a que me propunha. A investigação é um trabalho de equipa e, neste momento, o estudante de doutoramento mais envolvido no trabalho é o João Fonseca-Gomes, mas disponho de uma equipa de estudantes de doutoramento e um investigador doutorado que têm colaborado intensamente neste estudo.
Atualizado em 04/09/2020.